‘Livro do frio’, primer libro de Antonio Gamoneda que se publica en Brasil, con traducción y prólogo de Saturnino Valladares

‘Livro do frio’ [‘Libro del frío’], traducido y prologado por Saturnino Valladares (Lugo, 1978), acaba de aparecer en Brasil, publicado por Editora Valer (Manaos, 2020). Se trata del primer libro de Antonio Gamoneda editado en este país sudamericano.

Por gentileza de su autor, que desde 2013 trabaja como profesor en la Universidade Federal do Amazonas (UFAM), reproducimos el prólogo tal y como aparece en el libro, en portugués:

ANTONIO GAMONEDA: A BRANCURA DO FRIO

Por SATURNINO VALLADARES

Antonio Gamoneda é um poeta provinciano de vocação. Nasceu em Oviedo em 1931, mas, depois da morte de seu pai, mudou-se com sua mãe para León em 1934. Aprendeu a ler no único livro que havia em sua casa, Outra mais alta vida, um livro de poemas que publicara seu pai em 1919. Nesta obra a criança descobriu simultaneamente o significado das letras e uma linguagem que não pertencia à comunicação coloquial.

Com frequência, Gamoneda sentenciou que a poesia, sua poesia, “é o relato de como se avança para a morte, mas, simultaneamente, é também a arte de provocar prazer neste relato”. Arte da memória na perspectiva da morte, portanto, capaz de alcançar prazer mesmo no sofrimento. Partindo desta abordagem vital, não é estranho que o autor entenda que a poesia não é literatura, pois enquanto esta se erige sobre a ficção, aquela o faz sobre a realidade de nossa própria vida. Não obstante, é no processo de criação que Gamoneda descobre seu pensamento poético: “Eu não conheço meu pensamento enquanto não me dizem minhas próprias palavras”.

Relacionado cronologicamente com o chamado Grupo poético dos anos 50 –“a inexistente geração dos anos 50”, como muitas vezes afirmou–, só manteve relações com os seus autores canônicos muitos anos depois das estratégias promocionais do grupo, pois Gamoneda não foi convidado a participar na homenagem a Antonio Machado em Collioure em 1959, nem na antologia Vinte anos de poesia (1939-1959), de Josep Maria Castellet, nem na coleção de poesia crítica Colliure, dirigida por Jaime Salinas, onde estes escritores deram a conhecer sua obra comprometida. O primeiro membro do grupo que conheceu foi Claudio Rodríguez, no final da década de 70, e o último foi José Angel Valente[1] em 1996 – embora se cumprimentassem em 1975, como mostra sua correspondência[2] –. Dois traços característicos dos autores do Grupo poético dos anos 50 são sua condição burguesa e universitária. Aqui reside uma das grandes diferenças formativas entre estes poetas e Gamoneda, pois este provém da cultura da pobreza e nunca cursou estudos universitários.

De formação cultural e literária autodidata, sua poesia pinta uma delicada tela sobre certos argumentos vitais recorrentes, principalmente desde Descrição da mentira (1977). Destes surgem sensações e imagens que o poeta interioriza e dissemina esteticamente em cada livro, incorporando progressivamente novos matizes que completam, modificam ou modulam o anterior, mas é na leitura de sua obra poética completa que se percebe o relato contínuo de uma memória visionária que, como tantas vezes afirmou, se origina desde a perspectiva da morte.

Provavelmente, o núcleo fundador de sua poesia surge na infância. O menino incrusta o rosto entre as barras da varanda de sua casa e observa os presos sendo dirigidos para a cadeia de San Marcos, em León. Ele sabe que não voltarão. São os desaparecidos da repressão franquista. Posteriormente, a trágica recordação da ferrugem das barras está simbolicamente associada aos desaparecimentos. Assim surge o primeiro versículo de Descrição da mentira: “O óxido pousou-se em minha língua como o sabor de uma desaparição”. Em Lápides, seu seguinte livro, outros poemas colocam o leitor na frente da cena – “sucediam cordas de prisioneiros; homens carregados de silêncio e cobertores (…) cruzavam sob meus balcões e eu descia até os ferros cujo frio não cessará em meu rosto” – e contam o temeroso e protetor final:

(Mi madre, con los ojos muy abiertos, temerosa del crujido de las tarimas bajo sus pies, se acercó a mi espalda y, con violencia silenciosa, me retrajo hacia el interior de las habitaciones. Puso el dedo índice de la mano derecha sobre sus labios y cerró las hojas del balcón lentamente).

Gamoneda já tinha anunciado o gesto materno em Descrição da mentira, quando afirma que seu “hábito é a retração, a retirada para uma espécie materna”, embora a maior parte da crítica viu neste símbolo uma referência singular: seu longo silêncio poético durante o franquismo. Portanto, anunciado a partir de uma experiência real, um único símbolo gamonediano pôde compreender múltiplas referências. Neste caso, os anos longe da escrita poética e o gesto protetor da mãe. A imagem gamonediana é autorreferente, vivida, “de um profundo enraizamento existencial”. A sua inacessibilidade, por vezes, deve-se ao fato de raramente aparecer o contexto em que o poema se desenvolve.

Nesta breve apresentação, a aproximação à obra poética de Antonio Gamoneda vai ser realizada cronologicamente, considerando a ordem de escrita de alguns poemas significativos, e não o de sua publicação, embora advertindo que “a sucessão de textos não é uma mera sobreposição cronológica, mas supõe uma progressão ao mesmo tempo que sugere a retrospecção[3]”, como assinalou Claudio Rodríguez Fer.

Já nos primeiros poemas gamonedianos, o eu lírico assume o valor genérico da espécie até transmutar-se em um homem que sofre – “É um homem. Vai sozinho pelo campo […] Já o homem apenas chora. Pergunta-se / pelo sabor a morto de sua língua” –. A angústia existencial deste poema anuncia o que será uma das constantes gamonedianas: a poética da morte. O autor suspeita que esta foi adquirida a partir de dois fatos biográficos primordiais: a tristeza da mãe, fundamentada no desaparecimento de seu esposo; e, durante a guerra civil espanhola, nos frequentes e terríveis espetáculos mortais.

De todos seus livros, Blues castelhano (1961-1966) é o mais “carnalmente” querido por Antonio Gamoneda. Censurado na época, só viu a luz em 1982. Além da cadência rítmica, também se serviu o poeta do modelo de linguagem de protesto e consolação do jazz. Este último propósito já é mencionado explicitamente na citação da filósofa francesa Simone Weil que abre o livro “A desgraça dos outros entrou na minha carne”. O amor solidário, mesmo sendo fraterno em sua visita à tarde – “Entrei na casa e tirei o casaco / para que meus amigos não soubessem / quanto frio tinham”– e em sua natureza existencial, às vezes não consegue esconder a vergonha e o sofrimento que provocam a situação política e a consciência de classe do poeta, como em “Ocultar isto?”: “Sei que de repente algum rosto golpeado / virá olhar para mim e abrirá a boca […] Eu desci os olhos / ante o mundo. Cobri com uma sombra / minha vergonha e minha pena. Dispus-me / a uma fraternidade sem esperança”.

Esta temática já tinha sido abordada em Sublevação imóvel. Porém, Blues castelhano rompe com a abstração idealista do livro anterior desde o primeiro poema, “Questão de instrumento”, ao repetir uns versos de Sublevação imóvel para negá-los a seguir: “Escrevi-o com estas mesmas mãos, / mas não o escrevi com a mesma consciência”. Esta consciência faz com que o poeta caia “envolto / no olhar vermelho de meu amigo / e na covardia de meu coração”, que sonhe às vezes que o levam com as mãos atadas e que se questione, terrivelmente, se traiu seus amigos. Esta incerteza germinará poeticamente em Descrição da mentira.

Desde 1959 e durante sete ou oito anos, salvo raras ocasiões, Gamoneda abandonou a escrita poética. Este longo silêncio deveu-se à sua participação em atividades políticas contra a ditadura franquista. O poeta não realizava este tipo de ações isoladamente, mas fazendo parte de um reduzido grupo clandestino, do qual hoje é o único sobrevivente devido aos desaparecimentos de seus amigos: suicídios, assassinatos, estranhos acidentes, loucura. Os anos na clandestinidade serviram para que o poeta se enchesse de sentido e ajustasse sua sensibilidade à relação existente entre o poético e o visual. Em sua opinião, este tempo estimulou sua necessidade de “ver o pensamento”. É a passagem de Blues castelhano à Descrição da mentira.

Criado com vocação de livro, Descrição da mentira (1975-1976) pode ler-se como um único poema articulado por silêncios, como um diálogo com os entes queridos que desapareceram – duelo que continuará em Lápides, Ardem as perdas e Canção errônea –, como o relato incompreensível do que ficou dos espanhóis subjugados quando o país entrou na democracia – “quanto aconteceu não é mais que destruição” –, ou como uma acusação – “a acusação esteve muito tempo dentro de sua língua” –. Um texto enigmático, enunciado desde a perspectiva da morte, que revela a transição política com pesar e sentimento de culpa ao contemplar os ideais degradados e fracassados: “Profundidade da mentira: todos os meus atos no espelho da morte”. Segundo Miguel Casado, em Descrição da mentira “não só cristaliza a voz mais pessoal de Gamoneda, mas cria-se também o espaço em que vai se desdobrar toda sua obra posterior[4]”. Assim, o próprio poeta afirma que seu livro Lápides “poderia considerar-se como um conjunto de notas de rodapé de Descrição da mentira, ou seja, como se num bom número de blocos poemáticos se pusesse em claro não a razão poética, mas sim fatos e situações velados em Descrição”.

O centro germinal dos blocos rítmicos e as prosas poéticas de Lápides (1977-1986) remete a León, a cidade envergonhada que o menino contempla desde sua varanda: os horrores da guerra civil e a dor que o sofrimento alheio lhe provocam. Memória da morte, em definitivo. A última seção do livro começa com um aviso negro, desde o qual vai se escrever toda a obra posterior do autor: “Senta-te já a contemplar a morte”. O poeta reconhece-se em “o que já começa a não existir / e o que chora ainda”. Foi anunciado o branco território do Livro do frio.

A plenitude estética do Livro do frio (1986-1992) abre-se com uma seção intitulada “Geórgicas”, que canta uma natureza despojada, áspera e solitária, habitada pela dor e pelo esquecimento: “Há erva negra nas ladeiras e açucenas roxas entre sombras, mas, que faço eu diante do abismo?”. A experiência poética aproxima-se ao “não saber” de João da Cruz e o território branco da escrita é abandonado pelas palavras. Esta é a paisagem fria e musical na qual vai desenvolver-se a lembrança do amigo desaparecido, Jorge Pedreiro, o vigilante da neve; também os terríveis sinais do tempo sobre os corpos envelhecidos, o próprio e o amado: “Teu cabelo encanece entre minhas mãos e, como águas silenciosas, nos abandonam as lembranças. Sinto a frialdade da existência mas teu cheiro estende-se nos quartos e tua lascívia vive em meu coração e entra meu pensamento em tuas feridas” –. Na opinião do autor, Livro do frio é a ampliação de uma pergunta já formulada em Descrição da mentira: “Após o conhecimento e o esquecimento, que paixão me preocupa?”. A memória branca se concentra de tal modo que “ontem e hoje já são o mesmo dia em meu coração”. Na sua parte final, Livro do frio revela uma brancura mortal, a serenidade de uma luz vazia, que paulatinamente vai sendo povoada de si mesma até compreender a totalidade do olhar: “já só há luz dentro dos meus olhos”. No ano 2000, Livro do frio, a obra de consagração de Antonio Gamoneda, foi aumentado com a seção “Frio de limites” – vinte poemas provenientes de uma colaboração com o pintor Antoni Tàpies. Esta edição da editora Valer baseia-se nesta versão definitiva do Livro do frio.

Felizmente, a conclusão do relato que apontava Livro do frio permaneceu apenas numa intenção e a obra gamonediana continuou com outro livro extraordinário, Ardem as perdas (2003). A indiferença e o esgotamento com que o poeta contempla a ausência dos invisíveis rostos amados provém da incerteza que lhe provoca a existência: “Talvez o silêncio dure além de si mesmo e a existência seja só um grito negro, um alarido ante a eternidade”. A velhice proporciona uma clareza sem descanso. No entanto, o erro de não saber se se está vivo pesa nas pálpebras. Esta ideia será a pedra angular de Canção errónea. Sentado, desde Lápides, contempla a morte, pois em um verso final interpretou que “a única sabedoria é o esquecimento” quando ardem as perdas.

Cecília (2000-2004) é um livro singular na trajetória literária de Gamoneda. Se em sua obra anterior, o autor escrevia desde os limites da inexistência e do desaparecimento, a presença de uma menina real, sua própria neta, revela-lhe a possibilidade luminosa de advertir uma forma de vida em si mesmo. O próprio contato com a pele infantil se assemelha à eternidade, pois Cecília é a clareza e a certeza: “Como se pousasses em meu coração e houvesse luz dentro de minhas veias e eu enlouquecesse docemente; tudo é certo em sua clareza: / pousaste em meu coração, / há luz dentro de minhas veias, / enlouqueci docemente”. O poeta adia seu desaparecimento e se sente viver no pranto de sua neta – “Que estranha se tornou a existência: / você sorri no passado / e eu sei que vivo porque te ouço chorar” –. Sente o pranto infantil em suas veias, pois Cecília é sua enfermidade e quem o salva, em uma formosa contradição. Deste modo, conclui o diálogo amoroso, que não espera resposta: “Você é como uma flor diante do abismo, você é / a última flor”. Cecília afirma a existência: “Tu existes além dos meus limites”.

Embora apresentem concomitâncias com Cecília, Canção errônea (2005-2012) e A prisão transparente (2012-2016) levantam com solidez a dúvida da (indiferente) própria existência: “Não sabes se vás morrer porque também não sabes se nasceste”. O relato incompreensível do que resta de nós que assinalava Descrição da mentira tornou-se uma pergunta retórica desde o seu início, onde se parafraseia um verso de Lápides: “Definitivamente, sentei-me / a contemplar a morte / como quem espera notícias já sabidas”.

Em definitivo, as revelações da memória e o mito da morte com suas múltiplas imagens são os eixos sobre os quais gira a poesia gamonediana. Livro do frio é a obra que o consagra como um dos poetas mais significativos da língua espanhola do último século. 

NOTAS:


[1] José Ángel Valente abriu a coleção Cima del canto, com o livro Não amanhece o cantor (Valer, 2018), com tradução de Saturnino Valladares.

[2] VALLADARES, Saturnino. Retrato de grupo con figura ausente. Análisis de la correspondencia entre José Ángel Valente y los poetas españoles de su edad. Ourense: Diputación de Ourense, 2017.

[3] RODRÍGUEZ FER, Claudio. “Antonio Gamoneda o la riqueza de la pobreza”. Salamanca: Cuadernos del Lazarillo, 34, enero-junio, pp. 27-34, 2008.

[4] GAMONEDA, Antonio. Esta luz. Poesía reunida (19472004). Barcelona: Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores, 2004. Epílogo de Miguel Casado, “El curso de la edad”.

Saturnino Valladares con Antonio Gamoneda, en León, el pasado 8 de enero de 2020.

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